Além dos riscos (parte 1): incerteza knightiana e paradoxo de Ellsberg
Knight, Ellsberg e a ambiguidade: por que portfólios, derivativos e risco exigem finanças robustas
A distinção conceitual formulada por Frank Knight (1921) entre risco e incerteza estabelece os fundamentos para entender fenômenos fora da “curva de Bell” (i.e., além da distribuição normal clássica). Em termos knightianos, risco refere-se a situações com distribuição de probabilidades conhecida ou mensurável, ao passo que incerteza descreve eventos cujo modelo probabilístico é desconhecido ou indefinido (Knight, 1921). Em outras palavras, no risco conseguimos atribuir probabilidades numéricas confiáveis aos resultados futuros (por exemplo, a distribuição de cara ou coroa em uma moeda honesta), enquanto na incerteza verdadeira isso não é possível – os “desconhecidos” são desconhecidos (Keynes, 1937; Knight, 1921). Essa diferença fundamental implica que muitas técnicas estatísticas tradicionais – baseadas na suposição de conhecimento (ou estimabilidade) das distribuições – falham em contextos de incerteza knightiana.
Knight argumentou que apenas o risco é segurável e quantificável, ao passo que a incerteza não o é, de modo que os lucros extraordinários nascem da assunção de incerteza pelos empreendedores, não do mero risco calculável (Knight, 1921).
Keynes (1937), de forma semelhante, enfatizou que em muitos casos “simplesmente não sabemos” as probabilidades – por exemplo, o prospecto de uma guerra ou a taxa de juros daqui a vinte anos – não havendo base científica para um cálculo probabilístico objetivo. Em resumo, risco lidaria com variabilidade dentro de um modelo conhecido, enquanto incerteza envolve a possibilidade de que o próprio modelo não seja conhecido ou está sujeito a mudanças imprevisíveis.
Risco vs. incerteza: implicações em finanças – A separação risco/incerteza traz consequências operacionais significativas em finanças quantitativas, influenciando desde alocação de portfólios até precificação de derivativos e controle de risco. Em alocação de portfólio, a teoria clássica de Markowitz (1952) assume que os retornos dos ativos têm distribuições de probabilidade conhecidas (ou ao menos estimáveis), permitindo calcular média, variância e covariâncias para otimizar o trade-off risco-retorno. Isso funciona sob risco quantificável. Porém, diante de incerteza knightiana – por exemplo, quando o investidor não confia nas estimativas de probabilidade dos retornos futuros – as recomendações de alocação tornam-se menos confiáveis ou mesmo impraticáveis. Os investidores tendem então a adotar critérios robustos ou conservadores.
Uma abordagem é a alocação robusta de portfólio: em vez de confiar em uma única distribuição estimada de retornos, considera-se um conjunto de distribuições plausíveis e otimiza-se para o pior caso dentro desse conjunto (Garlappi, Uppal e Wang, 2007; Goldfarb e Iyengar, 2003).
Por exemplo, Garlappi, Uppal e Wang (2007) demonstram que incorporar incerteza de modelo via múltiplos cenários de probabilidade (múltiplos priors) pode justificar manter proporção maior em ativos livres de risco ou diversificar mais do que sugere o modelo média-variância clássico – um comportamento análogo à aversão à ambiguidade do investidor. Em termos práticos, soluções de portfólio robustas tendem a sacrificar um pouco de retorno esperado em troca de menor sensibilidade a erros de especificação do modelo (Ben-Tal, El Ghaoui e Nemirovski, 2009). Esse conservadorismo é o “preço da robustez”, refletindo a máxima de que em ambientes incertos é melhor errar pelo excesso de cautela do que pela precisão ilusória.
Na precificação de derivativos, a distinção entre risco e incerteza é central. Sob risco mensurável, usa-se a precificação neutra ao risco: assume-se um modelo estocástico conhecido (ex.: Black-Scholes) e o preço é o valor esperado descontado sob medida de martingala. Sob incerteza knightiana, as premissas (volatilidade, estacionariedade) tornam-se duvidosas; não há “valor justo” único, mas intervalos de preços dependentes de cenários. Surge a precificação robusta: em vez de parâmetros pontuais, consideram-se conjuntos plausíveis (p.ex., faixas de volatilidade) e obtêm-se super/sub-hedge. Um investidor avesso à ambiguidade tende ao pior caso, pagando mais por proteção. Resultado: preços mais conservadores, porém menos sensíveis a erro de modelo (Hansen & Sargent, 2008).
Nos mercados, os preços mais conservadores para as opções são explicados por um “prêmio de ambiguidade”: ativos com riscos não-hedgeáveis ou sem precedentes negociam com desconto / yields maiores, além do explicável pelo risco calculável (Epstein & Schneider, 2010).
No controle de risco e gestão financeira, incorporar a incerteza fundamental de Knight implica ir além das métricas tradicionais baseadas em distribuição. Ferramentas como Value at Risk (VaR) e Expected Shortfall partem da premissa de que conhecemos (ou estimamos adequadamente) a distribuição de perdas futuras. Sob incerteza genuína, essa premissa falha – a distribuição de perdas pode não ser estacionária ou sequer conhecida. Assim, gestores prudentes combinam as métricas tradicionais com análises ad hoc de cenários e stress tests que consideram choques hipotéticos sem probabilidade bem definida. A distinção de Knight sugere que, operacionalmente, deve-se diferenciar “riscos conhecidos”, contra os quais se provisiona capital com base estatística, de “incertezas desconhecidas”, contra as quais se adota margens de segurança qualitativas e planos de contingência (Taleb, 2007; Davidson, 1983).
Por exemplo, instituições financeiras após 2008 passaram a executar reverse stress testing: ao invés de perguntar “qual a perda sob determinado cenário de probabilidade p?”, perguntam “que tipo de choque (de qualquer probabilidade) poderia levar a perdas catastróficas e insolvência?”. Esse enfoque reconhece a presença de incertezas não capturadas pelos modelos (como colapsos de liquidez ou quebras de correlação), alinhando-se à visão de Knight de que alguns aspectos do futuro são incalculáveis e requerem julgamentos de cautela e não apenas cálculo (Knight, 1921; Taleb, 2007).
Em resumo, nas operações cotidianas de gestão de riscos, a incerteza Knightiana demanda uma dupla abordagem: (a) quantificar e gerenciar os riscos mensuráveis com ferramentas estatísticas, e (b) simultaneamente reconhecer limites desses modelos, criando salvaguardas para o imponderável – seja via liquidez extra, capital de reserva, diversificação adaptativa ou simples humildade nas decisões.
Paradoxo de Ellsberg e ambiguidade – Um dos argumentos clássicos que evidenciam a diferença comportamental entre risco e incerteza é o Paradoxo de Ellsberg. Proposto por Daniel Ellsberg (1961), ele demonstra empiricamente que a maioria das pessoas prefere apostar em urnas com probabilidades conhecidas do que em urnas onde as probabilidades são incertas, violando os axiomas da utilidade esperada de Savage. Em sua forma mais conhecida, considere uma urna A com 50 bolas vermelhas e 50 pretas (probabilidades conhecidas de 50% cada cor) e uma urna B com 100 bolas que são uma mistura desconhecida de vermelhas e pretas (probabilidades ambíguas). Ao oferecer apostas do tipo “ganhe R$ 100 se tirar bola vermelha”, a maioria prefere a urna A (onde a chance de vitória é precisamente 50%) em vez da urna B (onde a chance de vermelha pode ser 0–100%, mas é incerta). Paradoxalmente, se a aposta for invertida (“ganhe R$ 100 se tirar bola preta”), as pessoas também preferem a urna A. Essa escolha conjunta é inconsistente com qualquer probabilidade subjetiva fixa atribuída à urna B – revela uma preferência por não engajar em apostas de probabilidade incerta, mesmo quando a distribuição subjetiva poderia ser simétrica.
A interpretação é que os tomadores de decisão apresentam aversão à ambiguidade: um tipo de comportamento em que a incerteza quanto à distribuição (ambiguidade) reduz a atratividade de uma aposta além do que seria justificado apenas pela probabilidade esperada de ganho (Ellsberg, 1961; Camerer e Weber, 1992). Esse achado foi replicado extensivamente em experimentos, consolidando a ambiguidade como elemento importante na teoria de decisões.
Nas últimas décadas, evidências empíricas modernas têm reforçado a prevalência da ambiguidade e sua aversão em diversos contextos, inclusive financeiros. Camerer e Weber (1992) compilaram vários estudos mostrando que indivíduos consistentemente pagam prêmios para evitar loterias ambíguas, preferindo risco conhecido. Estudos mais recentes investigaram investidores reais.
Por exemplo, observa-se que em períodos de alta incerteza macroeconômica (medida por dispersão de previsões ou volatilidade implícita de indicadores), os investidores tendem a reduzir posições em ativos arriscados e manter mais caixa – um comportamento compatível com aversão à ambiguidade, onde a reação é mais forte do que a esperada apenas pela maior volatilidade (Anderson, Ghysels e Juergens, 2009; Epstein e Schneider, 2010).
Há também evidências de um “prêmio de ambiguidade” em ativos financeiros: ações ou títulos cujos fluxos de caixa ou riscos são mais difíceis de modelar (por exemplo, inovações tecnológicas, eventos políticos) exibem retornos médios superiores, sugerindo que os investidores demandam compensação extra por assumirem essa ambiguidade (Illeditsch, 2011). No mercado internacional, o home bias (viés doméstico) – excesso de investimento no próprio país – pode ser parcialmente explicado pela ambiguidade: investidores sentem-se mais confiantes (menos ambíguos) com informações locais do que com as estrangeiras, preferindo assumir riscos conhecidos localmente a enfrentar a incerteza de mercados externos (Camerer e Weber, 1992).
As constatações do home bias contradizem a teoria clássica de portfólio (que sob risco puramente quantificável recomendaria diversificação global) e indicam que preferências comportamentais frente à incerteza têm efeito real nos preços e alocações observados.
Diante do paradoxo de Ellsberg, a teoria econômica teve de se adaptar. Modelos tradicionais de utilidade esperada (Savage, 1954) reduziam toda incerteza a risco via probabilidades subjetivas: assumia-se que mesmo na ausência de frequências objetivas, o decisor age como se tivesse crenças bem-definidas (uma distribuição subjetiva única) e maximizasse sua utilidade esperada. Ellsberg mostrou que esse “atalho” falha em descrever preferências reais em situações de verdadeira ambiguidade. Em resposta, surgiram modelos de decisão não tradicionais que incorporam uma desutilidade adicional para a ambiguidade ou permitem múltiplas distribuições de probabilidade.
Por exemplo, Gilboa e Schmeidler (1989) propuseram o modelo de utilidade esperada maxmin com priors múltiplos: o decisor, diante de um conjunto P de distribuições plausíveis, avalia cada ação pela pior expectativa de utilidade dentre P (como um pessimista extremo). Esse modelo captura aversão extrema à ambiguidade e racionaliza formalmente o comportamento de Ellsberg – no exemplo da urna B, o indivíduo consideraria que a pior distribuição possível é aquela que zera a probabilidade de ganhar na aposta oferecida, levando-o a evitar a urna ambígua em qualquer das apostas.
Extensões desse arcabouço permitem graus variados de aversão à ambiguidade: ex. o modelo α-maxmin (que pondera o pior e o melhor caso com peso α) ou o modelo de preferências variacionais (Maccheroni, Marinacci e Rustichini, 2006). Outra abordagem influente é a de utilidade ambígua suave (Klibanoff, Marinacci e Mukerji, 2005), que introduz uma função de utilidade de segunda ordem sobre a distribuição de probabilidades, permitindo distinguir atitude frente ao risco e frente à ambiguidade separadamente. Tais modelos conseguem explicar fenômenos como a preferência por ativos de retorno mais estável em contextos ambíguos ou a relutância em apostar mesmo quando a chance subjetiva parece favorável, o que a utilidade esperada padrão não podia.Nos mercados financeiros, essas preferências ambiguity-averse têm implicações práticas.
Por exemplo, na formulação de políticas de investimento e precificação, Hansen e Sargent (2008) desenvolveram uma estrutura de controle robusto onde o tomador de decisão (investidor ou formulador de política) reconhece a possibilidade de erro de especificação no modelo econômico. Em vez de assumir um modelo único verdadeiro, ele considera um conjunto próximo de modelos e otimiza uma função objetivo penalizada pelo pior desempenho relativo a um adversário fictício (a “Natureza”) que escolhe o modelo mais desfavorável dentro desse conjunto.
Essa abordagem de controle robusto é matematicamente análoga a preferências com aversão à ambiguidade: a penalidade pela robustez pode ser vista como refletindo quão avesso o agente é a estar errado no modelo. Em contextos de política monetária e fiscal, incorporar essa incerteza estrutural pode tornar as regras de política mais conservadoras ou robustas a choques inéditos (Hansen e Sargent, 2008). Já para investidores, modelos de apreçamento de ativos sob ambiguidade (e.g., Epstein e Wang, 1994; Epstein e Schneider, 2010) mostram que a presença de investidores avessos à ambiguidade pode aumentar prêmios de risco de mercado e provocar inércia nas carteiras (Dow e Werlang, 1992) – por exemplo, investidores podem preferir manter uma fração de riqueza em ativo “seguro” sem retorno (inércia) a realocar inteiramente para ativos arriscados, mesmo quando a teoria clássica sugeriria alguma realocação dado o prêmio de risco, simplesmente porque a distribuição de retornos dos ativos arriscados é ambígua.
Em suma, o paradoxo de Ellsberg e a literatura subsequente evidenciam que ambiguidades importam – agentes econômicos de fato distinguem risco quantificável de incerteza não quantificável e frequentemente pagam para evitar esta última, o que levou a uma reformulação da teoria de preferência e ao desenvolvimento de modelos robustos para acomodar tais comportamentos em finanças.
Referências
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